As Telefones
2020


A história telefónica e acidentada de Filomena e Solange, mãe e filha.




“Não conheço o teu corpo, Filomena. Não conheço o meu corpo. De olhos fechados, não me lembro da tua cara. De olhos fechados, não sei como é a minha cara. Conhecemo‐nos por telefone. Na auto‐ ‐estrada, de soslaio, um cemitério de cabines telefónicas, à entrada de Lisboa. É o lugar onde as desmontam, agora, que já não as vemos nas ruas. Alinhados, os paralelepípedos de vidro e alumínio são um hospital de armaduras. Algumas começaram a ser desmembradas. Portas, dobradiças, fios, auscultadores, pernas, braços, entranhas amontoados em pilhas. As cabines ainda intactas lembram tatus fu‐ turistas ou, recuando no tempo, o exército na iminência do massacre, escudo contra escudo, elmo contra elmo, tenso, beligerante, mas inofensivo como no interior de um cristal. Bobele Yo, bobele Yo. Somente Tu, somente Tu.”



Lisbon: Relógio D’Água, 2020.