Maremoto
2021
A carta de Boa Morte da Silva, arrumador de carros, a Aurora, a filha que não conheceu.
Ela vive na Rua do Loreto, na paragem do 28. Ele, o combatente, estaciona carros ruas abaixo, na António Maria Cardoso. Maremoto narra a amizade entre ambos, avô e neta acidentais, catástrofe e salvamento. De Lisboa a uma Bissau imaginada, Boa Morte da Silva, arrumador de carros, arruma a sua vida, escreve-se, dirigindo-se à filha que mal conhece. “Vou cegar minha dor para a minha dor não encontrar teu coração. Que a minha dor nunca encontre o teu caminho, Aurora. Que a minha dor nunca te encontre.”
“Talvez alguém tenha reparado na rapariga que viveu na Rua do Loreto, na paragem do 28. Não dizia coisa com coisa. Ele, o combatente, estacionava carros ruas abaixo, na António Maria Cardoso. Ter‐se‐ão cruzado ou não, terão conversado ou não, foram contemporâneos como duas árvores, dois cães vadios, dois actores, são contemporâneos. Ele andava sempre de manga curta, nunca tinha frio. Ela vestia uma longa saia, camisolas negras e rasgadas. Tapava‐se com caixotes. Dormia à chuva. Quem sabe se notavam que mudávamos de passeio para os evitar, mudar de passeio no qual ia a nossa morte e não a sua.”
Perhaps someone noticed the young woman who lived on Rua do Loreto at the route 28 tram stop. She said things that made no sense. He, the soldier, guarded cars a few streets down on Rua António Maria Cardoso. Whether they crossed paths or not, whether they spoke or not, they were contemporaries like two trees, two stray dogs, two actors, contemporaries. He always wore short sleeves, never felt the cold. She wore a long skirt and black, torn blouses. She covered herself with cardboard boxes and slept in the rain. Maybe they saw that we changed footpaths to avoid them, changed to the footpath that lead to our death, not theirs. (Alison Entrekin, trans.)
Lisbon: Relógio D’Água, 2021 / Zurich: Unionsverlag, 2023.